Finalmente, folks, após um atraso de um dia provocado por circunstâncias alheias à minha vontade (uma reportagem que ocupa a capa e a central do Segundo Caderno, por exemplo), segue a última dezena de livros dessa nossa retrospectiva das 50 obras deste nosso 2008. Como eu já havia comentado (os livros já estavam selecionados, faltava escrever um que outro texto), a língua espanhola meio que domina esta lista, mas foi como eu já disse: foi o que se leu este ano. Pra começar, não leio em alemão e meu francês é pedestre, então dependo mais das traduções mesmo que chegam ao Brasil nesses dois idiomas — sem falar no japonês. Vai lá nossa última lista, que inclui, além de cinco obras originalmente escritas em espanhol, uma em alemão, uma em japonês, uma em italiano, uma em francês e um clássicaço em russo. Divirtam-se e discordem. Grande abraço.
41 - A volta ao dia em 80 mundos e Último Round, de Júlio Cortázar (Civilização Brasileira)
Ok, ok, Estes são dois livros, mas eles são projetos siameses, a bem dizer, e podem contar nesta lista como um só, porque sua tradução no Brasil saiu agora, em uma bela e simpática edição na qual cada livro tem dois tomos, do tamanho de uma caderneta de bolso e com ilustrações e bossas gráficas presentes nas duas edições originais, em 1967 e 1969. Cortázar aqui não é aquele escritor que todo mundo conhece da experimentação de O Jogo da Amarelinha e da concisão desconcertante de seus contos. Os dois livros são antes cadernos de anotações com impressões esparsas, quase crônicas: tiradas de espírito, digressões intelectuais com o sabor de um texto primoroso mas sem o rigor limitante do ensaio, breves resenhas de jazz, de tango, frases a esmo, como anotações para contos e novelas que o escritor decidiu não escrever e que conservou para sempre nesse estado larvar e fragmentário. Tradução de Ari Roithman e Paulina Wacht.
42 - Ciências Morais, de Martín Kohan (Companhia das Letras)
Escritor e professor de literatura, o argentino Martín Kohan tornou-se um nome conhecido por quem acompanha literatura depois que uma pequena editora de São Paulo lançou seu romance Duas Vezes Junho, que flagra duas Copas do Mundo, a de 1978 e a 1982, para pensar a ditadura militar argentina do período. Este Ciências Morais, vencedor do Prêmio Herralde na Espanha, foca a história de María Teresa, uma inspetora escolar no Colégio Nacional de Buenos Aires, instituição de elite, na Argentina de 1982, em plena ditadura. Kohan constrói nas contradições de María Teresa, no prazer que tira de sua autoridade, na paranóia que vê infrações em qualquer gesto, outra poderosa ficção sobre aceitação brutal do horror daqueles tempos como normal ou necessário. Tradução de Eduardo Brandão.
43 - História do Pranto, de Alan Pauls (Cosac Naify)
Alan Pauls, a quem que, confesso, eu não conhecia antes da publicação aqui em 2007 de O Passado — um livro maravilhoso transformado em um livro meia-boca — tornou-se de imediato em um daqueles autores de quem eu sempre espero alguma coisa em seus livros. Este A História do Pranto não me provocou o mesmo impacto que a leitura de O Passado, mas é um belo retrato de época ao narrar, de forma concisa, pelos olhos de um garoto de 13 anos, a história da esquerda argentina durante a ditadura militar dos anos 1970. É um delicado romance de formação com aqueles elementos que fazem a fortuna do gênero, como o olhar inicial ainda perdido nas ilusões de infância (o personagem acredita que é o Super-Homem), o núcleo familiar, a descoberta de um "outro" que provoca emoções contraditórias com as quais lidar (como a namorada de direita) e a síntese que produz um novo entendimento sobre o mundo. Tradução: Josely Vianna Baptista.
44 - Putas Assassinas, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras)
Lembram quando, na primeira dezena, eu comentei que o português Gonçalo M. Tavares era ele próprio, além de autor de talento, um "causo" literário, um personagem acerca do qual se acumulou nos últimos tempos um folclore sumamente interessante? O caso do chileno Roberto Bolaño é parecido. Morto em 2004, aos 50 anos, Bolaño teve uma atuação política e uma vida intensa, e só se dedicou com fervor à literatura após os 40 anos. Mas depois disso, veio a luz uma produção extensa e de qualidade, que torna Bolaño agora um dos mais fulminantes casos recentes de sucesso póstumo _ e portanto inútil. Este Putas Assassinas reúne 13 contos com passagens marcadamente autobiográficas, a maioria disposta sobre um eixo que opõe a arte e a vida, e as imbricações entre ambas. Destaque para O Olho Silva, melancólico relato sobre um fotógrafo homossexual que o protagonista conhece no exílio mexicano, para Dias de 1978,e para Últimos Entardeceres da Terra. Tradução de Eduardo Brandão.
45 - Seu Rosto Amanhã: Dança e Sonho, de Javier Marías (Companhia das Letras)
Um dos maiores escritores espanhóis em atividade, se não o maior (sem querer comprar briga com os fãs do Vila-Matas), Javier Marías produziu com este livro que sua editora chama de trilogia mas que ele já definiu como um único livro cindido em três partes para fim de comodidade um verdadeiro épico da distração. Há um tênue fio condutor que se assemelha a uma fantasia científica mesclada com literatura de espionagem: o personagem principal, Jaime Deza, é um ex-professor universitário que agora trabalha numa misteriosa agência secreta inglesa que contrata apenas pessoas como ele: que têm a misteriosa habilidade de prever o futuro próximo de uma pessoa olhando para seu rosto e decifrando seus gestos. Mas não se iluda. Não é um romance de ação, Deza a todo mundo se distrai do que está nos contando e embarca numa longa divagação que na maioria das vezes tem como centro o dilema de todo agente secreto, no fim: contar ou não o que descobriu? E o dilema do agente é logo estendido, pela prosa lenta e minuciosa de Marías, no dilema de toda a literatura: contar ou não? Este é o segundo volume da história, que sucede ao anterior Febre e Lança, já lançado pela mesma editora. Tradução de Eduardo Brandão.
46 - Austerlitz, de W.G. Sebald (Companhia das Letras)
Faz tempo, já, que o romance busca alternativas ao molde estritamente narrativo/realista par dar conta da complexa realidade contemporânea que pretende retratar. Um dos mais usados atualmente é aquele que mistura, no plano do conteúdo, a ficção e realidade, e, no plano da forma, articula a linguagem da ficção com a de outras produções textuais, como o ensaio e o estudo acadêmico. É nesta linha que vai este original Austerlitz, no qual acompanhamos a trajetória do protagonista pela Europa estudando edifícios e estações ferroviárias. A prosa de Sebald se desenvolve com uma exasperante cadência monótona, solene, acadêmica, até que a persistência do leitor vai sendo gradativamente recompensada quando se percebe que O personagem Austerlitz não está à cata de gares de trens, catedrais ou fortificações, está é à procura da própria memória: judeu, o personagem foi enviado para a Grã-Bretanha pelos pais checos a durante a II Guerra, e só assim sobreviveu ao horror do Holocausto. Austerlitz está à cata das memórias enterradas de seu passado, percorrendo os locais de passagem dos próprios pais. Claro, é uma escolha polêmica. A linguagem fria pode soar anódina, e a imbricação da pesquisa com a ficção pode soar artificial. Tradução de José Marcos Macedo.
47 - Eu sou um Gato, de Natsume Soseki (Estação Liberdade)
Vou ser honesto com vocês: livros em que a história é contada pelo ponto de vista alegórico de um animal, um bicho, precisam ser muito, mas muito bacanas para que eu goste. Pode ser um defeito meu, mas a capacidade de transcendência de uma história narrada por um bichinho me parece quase nula — principalmente porque autores de livros do gênero costumam esquecer as lições valiosas dos grandes satiristas e usar o mote para "livros queridinhos". De forma que eu me surpreendi muito ao ler este Eu Sou um Gato, romance japonês narrado, sarcasticamente, pelo ponto de vista de um gato, como o título entrega. Na melhor tradição da grande literatura, o livro usa o artifício do animal para apresentar um olhar "de fora" e "surpreso" com a maneira como as coisas se processam na vida de um professor estagnado em uma vida medíocre. Uma sátira à intelectualidade japonesa de fins do século 19 e início do 20, quando o Japão viveu as aceleradas transformações da Era Meiji e se tornou potência militar e econômica. Tradução de Jefferson José Teixeira.
48 - A Elegância do Ouriço, de Muriel Barbery (Companhia das Letras)
Este livro foi muito falado antes de chegar ao Brasil, o que me despertou uma certa desconfiança — sim, era meu lado esnobe falando. Até que a obra chegou ao Brasil este ano e eu fui lá conferir, e encontrei um romance que, se não chega a ser uma obra-prima, é uma reflexão muito interessante, usando as ferramentas da fantasia, sobre estereótipos e aparências (o que me levou a entender também por que ele havia feito tanto sucesso entre gente jovem. Quando um livro se dispõe a contar a história de alguém que é "mais do que aparenta", sempre encontra identificação dos jovens, que têm certeza de que são mais do que aparentam mesmo quando não o são). Mas eu falava das aparências: duas personagens que são "mais do que aparentam" se cruzam nesta história passada quase toda em um elegante edifício parisiense. Nele moram a sarcástica zeladora, que, apesar de leitora compulsiva e de grande inteligência, só se dirige aos moradores em um francês incorreto que a esconde atrás de um disfarce de falsa ignorância. A segunda personagem é Paloma, adolescente que tem uma percepção aguda do mundo mas que não a mostra à família e aos amigos (leiam o parêntese sobre o jovem de novo...). As duas se disfarçam em uma carapaça de ignorância e invisibilidade que é rompida com a chegada ao prédio de um japonês que não está nem aí para as questões de idade e de classe e que se aproxima de ambas _ é com a chegada deste personagem que o livro chega perigosamente perto do clichê de "o olhar de fora vê nossas virtudes" ou da "amizade redentora". Ainda assim, o romance é mordaz o bastante para justificar sua inclusão nesta lista. Tradução de Rosa Freire D'Aguiar.
49 - Sem Sangue, de Alessandro Baricco, (Companhia das Letras)
Esta novela de concisão exemplar (só 80 páginas nesta edição nacional) nasce de um desafio técnico imposto a si mesmo pelo autor, Alessandro Baricco, escritor e dramaturgo italiano também autor de Seda. A história consiste de dois momentos, narrados com esmero, e que têm entre eles um hiato de meio século. Em um país imaginário sem uma datação muito precisa, a fazenda de um médico, na qual mora com os dois filhos, é invadida por um grupo de sujeitos armados que promovem um banho de sangue no lugar. A matança é realizada como acerto violento de contas entre o lado vencedor e o perdedor de uma guerra que acabou recentemente. Baricco não situa claramente, mas é inevitável pensar nos ajustes entre os fascistas e seus opositores após o fim da II Guerra. A única testemunha/sobrevivente, é Nina, garota que se salva encolhida no fundo de um depósito. Cinquenta anos mais tarde, é a mesma Nina que nos levará em uma tentativa de entender o que aconteceu. Não vou mais adiante do que isso, a trama reserva uma sutil reviravolta que eu não quero estragar.Tradução de Rosa Freire D'Aguiar.
50 - Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski (Editora 34)
Falei que iria incluir algumas reedições que merecessem, e poucas mereceram tanto quanto esta, nova tradução direta do russo (só havia uma antes, que o autor, Bóris Schnaiderman, nunca quis ver reeditada porque achava cheia de erros) de uma das mais dilacerantes obras sobre ganância, misticismo e ódio. Muito antes de Freud e uma pá de psicólogos começarem a martelar o estrago da ausência da figura paterna, Dostoiéwski já havia feito neste livro uma de suas tragédias defnitivas. O torpe e bêbado Fiódor Karamázov, um dos homens mais odiosos da história da literatura, diverte-se em humilhar e confrontar os três filhos que teve oficialmente, Dmitri (Mítia), Iván e Alieksei (Aliócha) — além do criado, Smerdiakov (que também pode ser filho do bruto Fiódor). Dos filhos, o primeiro é um homem lascivo e de maus bofes (notaram como uma expressão dessas fica muito melhor se aplicada a um clássico?) que disputa com o pai a atenção de uma mulher de má reputação. O segundo, um intelectual que oscila entre o ateísmo e a religião, e o terceiro, um místico dividido entre o grosseiro pai material e o etéreo pai espiritual representado pelo stáretz Zózima. Eu poderia continuar este texto por horas falando de como as interações de todos esse personagens parecem um congresso de demônios trazidos à luz para nos impactar com o desnudamento de nossos piores ângulos, mas é hora de fechar este texto e esta retrospetiva, que já vão muito longos. Vão lá e leiam. A nova tradução é de Paulo Bezerra.
Bendito o que semeia livros. Quase não tínhamos livros em casa. Deus o livro, livrai-nos do mal. Neste espaço, o editor de livros de Zero Hora, Carlos André Moreira, partilha com os leitores informações, comentários, curiosidades, dicas, surpresas, decepções, perguntas, dúvidas, impressões, indiferenças e todas as outras tantas sensações proporcionadas pelos livros e pela leitura, esses prazeres tão secretos que merecem ser compartilhados.
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