Estamos na penúltima dezena, amigos, e o autor da retrospectiva já mudou um pouco o processo de novo. Em vez de deixar uma ou duas reedições só para a última parte, como havia prometido, já incluí algumas na parte anterior (como vocês puderam ver com a biografia do Machado de Assis) e nesta. Vamos agora, dar uma olhada no que este seu titular do blog mais curtiu do que leu em literatura em língua inglesa. A quem perguntar por que tanto destaque para a literatura de língua inglesa e espanhola (que será a maioria da próxima lista), respondo que não tem como uma lista destas não ser afetada pelas particularidades de quem a fez, especialmente quando o "quem a fez" é uma única pessoa, como no caso aqui. Provavelmente tem livros melhores que eu simplesmente não li e por isso não vou colocá-los aqui (é uma questão de honestidade intelectual com vocês avalizar apenas livros que foram lidos). Mas é impossível ler tudo, a gente só pode é tentar fazer melhor ano que vem — e não, esta explicação não é um mea culpa motivado pelo comentário cretino deixado na última lista. Sou aberto ao debate, mas quando a noção alheia de "debate" é mera provocação sem apresentação de argumento algum, estou fora. Boa leitura, senhores.
31 – Contos Completos, de Flannery O’Connor (Cosac Naify)
Não sou religioso, e, se perguntado, estaria inclinado a admitir exatamente o contrário. Mas uma coisa tenho de admitir: a religião e a arte já fizeram casamentos antes, principalmente quando a segunda prevalece sobre a intenção evangélica ou missionária da primeira. É o caso desta coletânea de contos perturbadores escritos por uma mulher católica carola que viveu os 39 anos de sua vida na Geórgia, estado norte-americano daquele sul que flerta em igual medida com a fé redentora e com o obscurantismo. Ainda assim, a obra de Flannery O’Connor reunida neste volume, que compila os 31 contos que a autora produziu ao longo de sua curta vida (a autora sofria de lupus eritematoso – e essa informação fará a delícia dos fãs da série House que estão me lendo. Os demais, ignorem, e sigamos adiante), é perturbadora. São histórias nas quais, apesar de um certo sentido místico latente, a violência está sempre espreitando nas relações pessoais, explodindo ao fim como um barril de pólvora cujo rastilho foi a prosa precisa e melancólica que veio antes. Esta edição traz ainda um posfácio do romancista e professor de literatura Cristóvão Tezza. Tradução de Leonardo Fróes.
32 - O Encontro, de Anne Enright (Alfaguara)
Este romance opressivo dialoga com a grande tradição da prosa em inglês, de Nabokov a Virgina Woolf, e valeu a sua autora o Man Booker Prize de 2007. Veronica, vinda de uma numerosa família irlandesa, é mãe de duas filhas e mantém um casamento que estã indo para o buraco. Sua última ligação afetiva parecia ser com o irmão, Liam, a pessoa mais próxima durante toda sua vida. E então Liam morre. O “encontro” anunciado no título é esse: Veronica viaja para buscar o corpo do irmão, e no trajeto relembra a história ao mesmo tempo épica e sombria de sua família – que é um pouco a de todas as famílias. Uma estrutura narrativa que lembra outra delicada peça literária da última década, Últimos Pedidos, de Graham Swift. Neste romance, como naquele, a viagem é um pretexto para que o autor escave as camadas de memória de seu ou seus protagonistas. A diferença talvez esteja na linguagem de Enright, mais carregada de uma poesia dolorida. Tradução de José Rubens Siqueira
33 - Monalisa Overdrive, de William Gibson (Aleph)
Não me entendam mal, eu adoro Júlio Verne, mas para muitos a ficção científica estacionou nele. Este livro faz parte de uma corrente literária de ficção científica mais suja, moderna e maltratada, mas nem por isso menos relevante, o assim batizado ciberpunk: uma linhagem de obras de ficção científica que trata das relações tênues entre o real e o virtual, das interações homem-máquina, e de anti-heróis que vivem à margem do sistema em uma sociedade na maioria das vezes totalitária. O William Gibson autor deste romance é um dos papas do gênero, e foi quem primeiro cunhou termos como "ciberespaço", por exemplo. Neste Monalisa Overdrive, por cinco pontos-de-vista diferentes, Gibson mostra um mundo futurista no qual o grande barato é as pessoas se conectarem ao universo virtual chamado "matrix" para viver uma espécie de alucinação sensorial coletiva que substitui a realidade. Ali, os usuários participam de "stims", filmes interativos com imersão virtual, grande sucesso de público. Tradução de Fábio Fernandes
34 – Menino de Lugar Nenhum, de David Mitchell (Companhia das Letras)
Celebrizado em alemão com o termo “bildungsroman”, o romance de formação tem como núcleo narrativo o ponto em que um jovem, marcado por experiências transformadoras ao longo do livro, faz a síntese de sua breve vida e, como resultado, adquire uma dolorosa consciência da realidade, abandonando assim a infância e ingressando de vez no universo adulto. Na maioria das vezes, pode ser algo lírico, ou melancólico, mas nos melhores exemplares do gênero é sempre doloroso, já que se fala de um segundo nascimento, do parto de um adulto (não esquecer a associação que Sócrates fazia entre a iluminação intelectual e o parto, a maiêutica). Neste belo romance de formação, David Mitchell faz também o retrato de uma época, ao contar um ano na vida de um adolescente que sofre com as onipresentes rusgas no colégio enquanto cresce na Era Thatcher, período de recessão e de Guerra das Malvinas (sim, senhores, já há romances de formação sobre a Guerra das Malvinas, definitivamente estamos ficando velhos). Tradução de Daniel Pellizzari.
35 – Moby Dick, de Herman Melville (Cosac Naify)
Sim, eu sei, este não é um livro “deste ano”, tecnicamente, mas eu havia mencionado no início da retrospectiva que provavelmente incluiria algumas boas reedições, não? E esta é provavelmente a melhor delas, ao lado da dos Irmãos Karamázov, de Dostoiévsky. O clássico de Herman Melville em nova tradução, com o trabalho editorial mais completo já feita no Brasil, baseado na edição crítica americana da Northwestern-Newberry, de 2001, com pesquisa e fixação de texto de um dos mais poderosos clássicos da literatura. A edição traz ainda um glossário náutico (Melville foi ele próprio um marinheiro, e sabia do que estava falando quando descrevia a vida no mar, ao contrário de muitos de seus leitores, perdidos entre tantos termos técnicos), e uma respeitável fortuna crítica , como uma resenha da época da publicação do livro e o famoso ensaio de 1923 de D.H. Lawrence. A história? Homem se alista em navio baleeiro comandado por maluco obcecado por uma baleia branca que decepou-lhe a perna no passado. Tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza.
36 – Absurdistão, de Gary Shteyngart (Rocco)
Pense neste autor como uma espécie de Gogol Bordello da literatura. Russo de nascimento mas residente nos Estados Unidos, Shteyngart é um grande satirista que alcança o melhor de sua forma neste romance cujo tom sarcástico e ritmo delicioso o aproximam de grandes autores cômicos de língua inglesa, como Evelyn Waugh ou P.G. Wodehouse, mas com um toque de cinisco contemporâneo. Absurdistão conta a história de Misha Vanberg, de nacionalidade russa, filho do 1238º homem mais rico da Rússia, bon vivant, e residente nos Estados Unidos, onde torra a grana do papai com bebidas, com a boa mesa, com tentativas frustradas de se tornar rapper. Até que o pai de Misha, um daqueles ricaços suspeitos que fizeram fortuna na passagem do comunismo ao capitalismo, é assassinado, e Misha é obrigado a viajar para sua terra natal. Sua tentativa de de voltar para os Estados Unidos é barrada depois que se espalha que seu pai matou um americano em solo russo. Misha então se lança numa odisséia em busca de um passaporte falso para entrar outras vez na "terra da prosperidade". Para isso, precisa viajar para a corrupta, minúscula e fictícia república do Absurdivani, também chamada Absurdistão, e lá é envolvido pelo estouro de uma guerra civil.
37 - Divisadero, de Michael Ondaatje (Companhia das Letras)
Sim, o nome é familiar mesmo. Ondaatje se tornou mundialmente conhecido como o autor de O Paciente Inglês, depois transformado em filme oscarizado pelo diretor Anthony Minghella. Neste Divisadero, Ondaatje usa das características marcantes de sua prosa, uma fusão entre poesia e prosa, a busca por imagens inusitadas, para narrar a história de três irmãos de criação que crescem em uma fazenda na zona rural da Califórnia. Anna, única filha do fazendeiro dono do lugar, Claire e Coop, adotados pelo patriarca. Uma aproximação entre Coop, sobrevivente de um massacre em uma propriedade vizinha, e uma das garotas vai pôr a perder a relação idílica da família e decretar uma separação violenta dos três, separação que Ondaatje acompanha tão minuciosamente como antes havia acompanhado a proximidade. Tradução de Augusto Pacheco Calil.
38 - As Revelações Picantes dos Grandes Chefs,de Irvine Welsh (Rocco)
Irvine Welsh foi autor “cult-pop” dos anos 1990, dado o sucesso avassalador de seu romance Trainspotting, até hoje sua obra mais conhecida, narrada em um inglês fonético que reproduz sotaques e cacoetes da fala de cada personagem. A diferença entre Welsh e Brett Easton Ellis, autor de Psicopata Americano que foi o “autor-pop” da década de 1980, é que Welsh é um escritor melhor, e seus livros posteriores provaram que o autor tinha fôlego para mais do que uma temporada de fama. É prova disso este irônico e mordaz As Revelações Picantes dos Grandes Chefs, que, para começo de conversa, tem pouco a ver com culinária ou gastronomia. Welsh narra a história de dois escoceses antagônicos que trabalham no departamento encarregado de fiscalizar os restaurantes de Edimburgo. Depois de focar os excluídos da era Thatcher, Welsh retrata as contradições da era Blair. Tradução de Maira Parula e Daniel Frazão.
39 – O Tigre Branco, de Aravind Adiga (Nova Fronteira)
Esqueça a Índia da novela das oito, a baboseira riponga que grudou na Índia a partir dos anos 1960 como um “paraíso espiritual” e mesmo a mais recente onda triunfalista que vê no país um dos gigantes do capitalismo no futuro. Este livro, vencedor do Man Booker Prize deste ano, traz um pouco de tudo isso, mas filtrado pelo olhar cru da realidade. Na Índia que Adiga apresenta, o misticismo mistura-se à ignorância e à privação material absoluta, o empreendedorismo que pôs o país no mapa da economia global tem muito de gangsterismo, como só poderia acontecer no Terceiro Mundo, nós brasileiros sabemos bem, e, a melhor coisa, não tem Lima Duarte com a testa pintada de vermelho. Enclausurado numa prisão em Bangalore, um criminoso narra, em uma carta para o primeiro-ministro da China, que está visitando o país, a sua trajetória em busca da ascensão financeira. Uma trajetória pontuada de crimes, vigarice, proxenetismo e cobiça. Tradução de Maria Helena Rouanet.
40 – O Livro Negro, de Orhan Pamuk (Companhia das Letras)
Sim, este não foi originalmente escrito em inglês, e sim em turco, mas já encerra esta dezena marcando a passagem para a seguinte, na qual trataremos de livros escritos em espanhol, francês e alemão, entre outros. Prêmio Nobel de Literatura de 2006, Pamuk tem agora lançado no Brasil um livro que é de fato seu primeiro romance. Como viria a fazer com regularidade nas obras seguintes, Pamuk usa uma sombra de estrutura de romance consagrado para, nela, inserir temas e questões originais e relativas ao mundo contemporâneo. Estruturado como um romance policial, O Livro Negro narra a história de Galip, jovem advogado em busca pela esposa instável, a prima Rüya, que desapareceu, e por um primo, Celâl Salik, cronista famoso de jornal, que também sumiu misteriosamente. Nessa aventura que tem tanto de policial como de existencial, Galip vai perdendo os traços da própria identidade.
Bendito o que semeia livros. Quase não tínhamos livros em casa. Deus o livro, livrai-nos do mal. Neste espaço, o editor de livros de Zero Hora, Carlos André Moreira, partilha com os leitores informações, comentários, curiosidades, dicas, surpresas, decepções, perguntas, dúvidas, impressões, indiferenças e todas as outras tantas sensações proporcionadas pelos livros e pela leitura, esses prazeres tão secretos que merecem ser compartilhados.
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