Continuando nossa retrospectiva dos melhores livros publicados no Brasil em 2008, vamos adiante com outros 10 livros, desta vez apenas os publicados por autores brasileiros ou de língua portuguesa. A numeração, lembrando, não representa uma hierarquia qualitativa, é só para eu não me perder mesmo.
11 - Ontem não te vi em Babilónia, de António Lobo Antunes (Alfaguara)
A literatura de Lobo Antunes não é fácil, trata-se de um escritor que cria seu público: ou o leitor abandona nas primeiras 20 páginas, com preconizava W. Somerset Maugham, ou entra no ritmo musical e polifônico ditado com mão de ferro pelo autor e o que se segue é deslumbramento. Os romances de Lobo Antunes se estruturam em uma delicada arquitetura em que nada sobra e ao mesmo tempo nada está na ordem lógica. As vozes dos narradores em primeira pessoa, caudalosos fluxos de consciência, são entrecortadas por parênteses que funcionam como o pensamento do narrador sobre o que está contando, ou vozes ouvidas em outro momento e não naquele que está sendo narrado, imbricações que vão fazer sentido muitas páginas adiante. Neste volume, esse recurso é usado para narrar as vidas de cinco insones, da meia-noite às cinco da manhã. Nesse fiapo de enredo banal, cabem as vidas acidentadas dos cinco personagens.
12 – O Silêncio dos Amantes, de Lya Luft (Record)
Depois de anos dedicada a ensaios que a transformaram em best-seller nacional, a escritora Lya Luft voltou às lides da ficção com esta dilacerante coletânea de contos, que têm em comum os estragos provocados por aquilo que não é dito. Ao contrário do que pode vir a pensar um desavisado, o “silêncio dos amantes” do título não é o silêncio cúmplice que comunica sem palavras, é sim a incapacidade e/ou dificuldade de se expressar o amor a seu objeto. Massacrados pela vida vivida no automático, muitos dos protagonistas dos 20 contos do volume deixam de dizer palavras essenciais, deixam de fazer um gesto que teria mudado suas vidas – ou ao menos impedido que elas se esfarelassem. Leia mais sobre Lya Luft neste post, aqui mesmo no blog.
13 - Venenos de Deus, Remédios do Diabo, de Mia Couto (Companhia das Letras)
Um dos principais nomes da literatura de língua portuguesa feita nas ex-colônias de África (e talvez o mais conhecido aqui no Brasil), apresenta neste livro dividido em 18 capítulos quase autônomos a história do médico Sidônio Rosa, português eu parte para Moçambique, oficialmente para ajudar no combate de uma epidemia que se alastra pelo lugarejo de Vila Cacimba. Na verdade, Sidônio está é atrás de Deolinda, mulata por quem se apaixonou perdidamente. Quando chega ao lugar, entretanto, Sidônio não encontra a amada, restando a ele apenas rastreá-la em conversas com os demais e cuidar do pai enfermo da jovem até que ela volte. Como em seus outros romances, Mia Couto subverte um elemento de mistério para lidar com as noções de identidade do continente africano perante si mesmo e perante o colonizador, e o papel do ex-colonizador em uma África pós-colonial.
14 - Era uma Vez um Alferes e Outras Histórias, de Mário de Carvalho (Companhia das Letras)
Muito provavelmente vocês não conhecen Mário de Carvalho (sem piadas com Armário de Carvalho, por favor), o que é uma pena. Um dos nomes mais respeitados da ficção portugesa contemporânea, é um autor de uma versatilidade admirável, passando do escracho com tintas pós-modernas de um romance cômico como Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto para a solenidade estóica de uma ficção história como Um Deus Passeando na Brisa da Tarde. Comunista e ex-militante da resistência contra Salazar, Mário de Carvalho é também um autor que recupera um pouco dos elementos da fábula, do estranho, em narrativas bem-humoradas e de um lirismo singelo como as reunidas neste livro de contos — na verdade seleção de três livros originalmente publicados em Portugal: Era Uma Vez Um Alferes, Casos do Beco das Sardinheiras e Seiscentos Mil Sestércios seguido de O Conde Jano.
15 - Pó de Parede, de Carol Bensimon (Não Editora)
Esta estreia em livro da jovem escritora porto-alegrense Carol Bensimon reúne três textos de média extensão, aquilo que se chamaria ou um conto longo ou uma novela mais breve. Em comum o olhar jovem sobre temas como amadurecimento, solidão, um sentimento de desamparo no mundo e uma busca por afeto e contato na realidade cotidiana, opressiva pela brutal indiferença de todo dia. Em A Caixa, um improvável trio se forma unindo a princesa da escola, de vida aparentemente perfeita, e dois dos jovens “inadequados” do colégio. Em Falta Céu, a rotina de uma comunidade de baixa renda é transformada com a proximidade de um megalômano condomínio de alto luxo, e em Capitão Capivara duas história se cruzam, a de um autor policial e de uma jovem contratada para ser a mascote de um hotel decadente. Mais sobre o livro, aqui mesmo no blogue.
16 - O Livro das Impossibilidades, de Luiz Ruffato (Record)
Em 2005, Ruffato deu origem à publicação da série Inferno Provisório – uma obra pretensiosa, no bom sentido. Em uma literatura nacional por demais centrada na subjetividade, Ruffato decidiu mesclar esse mergulho na consciência de seus personagens com uma história ficcional que abarcasse o desenvolvimento da classe proletária no Brasil do último meio século Aqui, como nos demais livros (Mamma Son tanto Felice, O Mundo Inimigo e Vista Parcial da Noite), histórias semi-independentes protagonizadas por uma gama de personagens que podem ou não ter aparecido antes traçam um panorama das migrações urbanas dos anos 1960 e 1970, época do “Milagre Brasileiro”. Se os primeiros livros centravam-se na periferia de Cataguases, em Minas, agora este está em movimento, viaja até São Paulo, até o Rio, flagrando as jornadas em busca das fartas oportunidades dos grandes centros – no fim das contas nem tão fartas assim.
17 - Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum (Companhia das Letras)
Não é apenas a América Central que tem seu mito da cidade perdida com prédios feitos de ouro. Também na Amazônia se fala da “cidade do ouro”, perdida em caminhos pelos quais só se chega enfrentando a selvageria da floresta e a imensidão barrenta do Rio Amazonas. O autor brasileiro mais “tradicional” esteticamente, tributário do grande romance realista, recupera esse mito amazônico para traçar a história de um Arminto, herdeiro de uma família que se fez economicamente no ciclo da borracha – outra acepção para o “Eldorado” do título, a própria Manaus então decadente. A paixão de Arminto por Dinaura vai ser o seu naufrágio, assim como o naufrágio de um navio será a derrocada da companhia herdada pelo protagonista. Aqui no blog, já publicamos uma entrevista com o autor sobre o livro, que você lê clicando aqui.
18 - A Parede no Escuro, de Altair Martins (Record)
O padeiro Adorno desperta de um pesadelo perturbador: um sonho incestuoso com a filha, no qual uma tromba, um apêndice negro, emergia de seu braço (do dele, Adorno). Adorno vai levantar pesado da noite maldormida, preparar a encomenda de pães do dia e sair com uma chuva diluviana. E então será atropelado. Em volta desse impactante ponto de partida, Altair Martins tece uma narrativa de vidas entrelaçadas, ainda que disso não tenham conhecimento. A filha de Adorno não mora mais com os pais, divide apartamento com uma colega de faculdade, amante de um professor, que vem a ser também o homem que atropela Adorno quando ia à casa dos pais para levar o pai doente a uma consulta. Cada personagem introduzido pelo autor traz para a narrativa uma prosódia e uma dicção peculiares e plenamente reconhecíveis. Mas ao contrário de seus outros livros, nos quais uma linguagem experimental que casava prosa e poesia dominava, agora Altair Martins tem uma história poderosa. E a conta com brilho.
19 – O Maníaco do Olho Verde, de Dalton Trevisan (Record)
A bem dizer, Dalton Trevisan está há uns bons 40 anos escrevendo o mesmo livro, coletâneas de contos que exploram violência, crueldade, taras, o sexo como fascínio e vício, formas desviantes de sexualidade, tudo com uma linguagem que já se tornou só dele, enxuta, áspera como uma lixa, mais desconcertante ainda por se valer de diminutivos e de uma desbragada coloquialidade para ir direto ao ponto, o “ponto” sendo abusos, traições, defloramentos, violência. O caso para estudo mais aprofundado é como esse mesmo livro que Trevisan vem lançando incessantemente consegue ainda provocar impacto? Não vou arriscar palpite, mas acho que consegue sim, e este O Maníaco do Olho Verde (uma espécie de irmão bastado do Vampiro de Curitiba, do mesmo Dalton), é a prova.
20 – A Arte de Produzir Efeito Sem Causa, de Lourenço Mutarelli (Companhia das Letras)
Por anos conhecido apenas como um dos grandes nomes do quadrinho underground brasileiro, Lourenço Mutarelli é hoje nome da literatura, autor de quatro romances (um deles o adaptado para o cinema O Cheiro do Ralo). A Arte de Produzir Efeito Sem Causa é seu mais bem-acabado trabalho até aqui, e um dos poucos livros no Brasil recente a evocar o horror cotidiano da classe média. O romance narra a história de um sujeito medíocre, que, devido a um episódio infeliz, abandona emprego e família e volta a dormir em um sofá na casa do pai. Em um cenário de enfeites que já foram frascos de perfume da Avon e quadros de crianças envoltos em lendas macabras, ele rememora obsessivamente números de série de kits de peças para automóveis (seu antigo ramo de trabalho). Um dia, começa a receber envelopes anônimos com sombrios recortes de jornal, a maioria relacionados a um crime (real) cometido pelo escritor beatnik americano William Burroughs.
Amanhã, a parte 3, com livros de não-ficção e literatura estrangeira.
Bendito o que semeia livros. Quase não tínhamos livros em casa. Deus o livro, livrai-nos do mal. Neste espaço, o editor de livros de Zero Hora, Carlos André Moreira, partilha com os leitores informações, comentários, curiosidades, dicas, surpresas, decepções, perguntas, dúvidas, impressões, indiferenças e todas as outras tantas sensações proporcionadas pelos livros e pela leitura, esses prazeres tão secretos que merecem ser compartilhados.
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