Estação de trem em Novi Sad, SérviaFoto: the_emo1979, Flickr |
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A língua, ou melhor, o não entendimento dela, é uma das causas dos maiores perrengues em viagens. Em países desenvolvidos ou muito turísticos, não costuma ser um problema. Se vai bem no inglês, espanhol ou até no portunhol. Mas não é em todo lugar que é assim.
Falo de carteirinha sobre isso pela experiência que tive na então Iugoslávia, em 1997. Nos Balcãs, nem se usa o nosso alfabeto. Eles escrevem preferencialmente em cirílico, aqueles sinais esquisitos também utilizados na Rússia. Ou seja, não conseguia sequer ler placas, jornais, marcas de produtos, nada. Há 10 anos, apenas estudantes falavam inglês no país, mas nos locais públicos, nas lojas, farmácias etc, ninguém entendia outro idioma, senão o local. Me virava na linguagem universal dos sinais e da boa vontade. Sim, ela existe, e a gente inclusive se aprimora na coisa, mas tem seus limites.
Foi na viagem para Montenegro, para conhecer o lindo litoral do Mar Adriático de que já falei aqui, que estes limites se mostraram quase intransponíveis. "Morava" há dois meses em Novi Sad, na Sérvia, quando decidi fazer o passeio. Meus amigos sérvios (que falavam inglês) desaconselharam ir até lá sozinha e me assustaram muito em relação ao transporte. Havia duas opções: ônibus e trem. Era melhor, mas mais caro, ir de ônibus (e eu era estudante) ou, se fosse de trem, deveria impreterivelmente reservar uma couchette (aquele lugar em cabines com cama), porque, segundo diziam, as reservas para assentos normais eram vendidas para mais de uma pessoa e não garantiriam lugar algum. Segui a dica e reservei a couchette para a viagem noturna de ida, que levava umas oito horas, se me lembro bem. Para a volta, só poderia fazer a reserva quando chegasse a Montenegro. Pois a viagem de ida foi uma maravilha. O trem era bem ok (nada parecido com os trens maravilhosos da Alemanha, mas limpinho) e eu dormi tranqüilamente grande parte do trajeto. Foi quando cheguei na estação em Bar e tentei reservar a cabine para a volta que o perrengue começou a se apresentar. Não tinha mais lugar e, não tendo outra opção, reservei um assento normal.
Em Montenegro, a comunicação realmente foi bem difícil, ainda mais do que era na Sérvia, mas deu pro gasto. No dia do retorno, nervosa com a perspectiva de encontrar alguém sentado no meu assento, fui para a estação com duas horas de antecedência. O primeiro a ser feito era achar alguém que me entendesse e informasse onde deveria me posicionar. Até aí, tudo certo. Um dos fiscais indicou o vagão e o assento que supostamente estava na passagem em cirílico. Sentei na cabine vazia, num vagão também praticamente vazio. "Estranho, aquilo não estava batendo com o que as pessoas me diziam, de que o trem ficava sempre muito lotado". Ingenuamente, imaginei ter tido sorte ou que meus amigos tinham me assustado sem motivo.
O trem partiu, e continuava sentada sozinha, louca para me esparramar nos bancos vizinhos. Mas aí veio a primeira parada e vááárias pessoas embarcaram, entre elas uma família de ciganos (sujinhos, sem reserva de lugar, é claro), que escolheu se instalar na minha cabine. Estavam em maior número do que os lugares disponíveis e não hesitaram em me espremer num canto. Houve uma tentativa de comunicação – um deles falava um pouco de alemão e trocamos algumas palavras amenas –, enquanto eu me agarrava à minha bolsa e imaginava como seria uma noite com os ciganos. "Era o que de pior poderia acontecer naquela viagem", pensei, até que o trem parou novamente. E, sim, aconteceu o que haviam me avisado que iria ocorrer. Hordas invadiram o trem (como nos ônibus em horário do pico) carregando malas, trouxas e passarinhos (sem exagero). Os ciganos (sem reservas compradas) foram os primeiros a serem expulsos da cabine. Minutos depois, chegou a minha hora. Uma senhora sérvia (ou de Montenegro, sei lá) veio até mim, gritou, esbravejou algo que não compreendi. Tentei, obviamente sem sucesso, argumentar que tinha passagem e reserva para aquele lugar. Mas não teve jogo, não havia a menor condição de me defender com a língua dos sinais. Abandonei o lugar, passei pelo corredor lotado carregando bagagem, ainda na esperança de encontrar um fiscal que pudesse me ajudar e defender.
Como só ia acontecer, não aconteceu. Falei com mais de uma pessoa, ouvi algumas informações desencontradas e acabei desistindo de achar uma cabine para sentar. Para sair do meio da multidão, fui até outro vagão, o das couchettes, que surpreendentemente estava com o corredor vazio. Pronto, ficaria ali. Um dos guardinhas do trem ainda tentou me impedir, dizendo num parco inglês que era proibido transitar naquele vagão. Foi a hora do escândalo. NÃO, quase chorei, mas NÃO deixei ele me tirar dali. "Eu havia comprado passagem, feito reserva, chegado cedo, ninguém havia me informado nada direito, uma mulher havia praticamente me arrancado de onde estava e NÃO, não voltaria ao corredor lotado", gritava. E funcionou.
A idéia era descansar no chão mesmo (não seria a primeira vez que faria isso), e o pior parecia ter passado. Mas fazia frio...e eu não tinha casaco, de modo que a coisa ficou ainda mais desconfortável, não conseguia dormir de jeito nenhum e o tempo absolutamente não passava. Enquanto isso, alguns dos passageiros das cabines daquele vagão – em vez de ficarem em suas caminhas – estavam no corredor, conversando e bebendo Rakia (a bebida típica do país, uma aguardente muito forte que eles apreciam até no café da manhã). Não domorou para puxarem assunto comigo, descobrirem que não falava sérvio, que era brasileira... Rolou aquela conversação na língua universal: Ronaldo! Pelé! Samba! e blá blá blá até acabar o vocabulário possível.
Olhava no relógio de cinco em cinco minutos e agradecia a Rakia que meus colegas de corredor me ofereciam a cada meia hora. "Aquela noite nunca acabaria, ou não acabaria bem". Até que lá pelas tantas um dos senhores, um velhinho muito querido, um anjo da guarda, veio até mim e ofereceu o cobertor da cabine dele. Quase beijei aquele senhor!!!! Um cobertor era como se eu tivesse adquirido acesso a uma suíte num hotel cinco estrelas! Era o que precisava para deitar, dormir e fazer aquela viagem andar. Algumas horas depois, o mesmo anjo da guarda desembarcou numa estação uma hora antes de onde eu terminaria a viagem e novamente me chamou para ocupar a cabine dele, que ficaria livre. Ufa, terminei a viagem dormindo em uma couchette.
Ao chegar a Novi Sad, a cidade – tão longe de casa, onde se falava uma língua tão estranha para mim – pareceu subitamente muito familiar e segura.
Lições para evitar o perrengue "ficar sem lugar no trem"
O perrengue acima não é facilmente replicável em qualquer lugar do mundo (ainda bem!) e não sei se poderia ter sido totalmente evitável, a não ser que eu não tivesse feito a viagem até Montenegro, o que não era uma opção. De qualquer forma, serve para lembrar alguns cuidados importantes:
1 – Em períodos concorridos (fim de semana, feriados, na alta estação) nunca viaje sem reservas. Existe sempre a possibilidade de o trem estar lotado.
2 – Em países de língua estranha, principalmente viajando só, evite riscos. Ouça os conselhos de quem mora no lugar e pague mais para isso, se necessário. Se a viagem de ônibus é segura, vale a pena gastar um pouco mais.
Histórias, dicas, lembranças e planos de viagens para quem adora passear por aí (e depois voltar para casa). Por Tatiana Klix
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