Não sou um praiano. Definitivamente. Passei duas semanas às fímbrias do Mar Oceano, no fevereiro que há pouco se esvaiu, até chegar a essa conclusão sobre mim mesmo. Uma evolução. Sócrates, o feio, Freud, o fumante, e Nietzsche, o bigodudo, já diziam que o mais difícil é conhecer-se a si próprio e, de fato, o que eu mais queria era saber o que quero. Ou pelo menos o que não quero. Ou o que não sou. Isso já descobri: não sou um praiano.
Poderia alegar motivos humanitários para não o ser. Poderia dizer que, parado ali, com os pés afundados no calor da areia da praia, contemplava o Atlântico e, mirando o horizonte infinito, sabia que lá do outro lado estende-se a Mãe África, com seus leões, hienas e crocodilos e os bandos de gnus que alimentam a todos, sim, mas também com seus problemas intermináveis, a fome na Somália, a aids que dizima populações, a guerra fratricida. Poderia ainda dizer que o ócio improdutivo me agastava ou que sentia saudades do contato caloroso com os leitores ou que achava tratar-se de injustiça, eu de bermudas e havaianas enquanto milhões de brasileiros forcejavam para ganhar a vida.
Mas não.
Meu problema é o desconforto. Para começar, tem o sol. Não que não aprecie o sol. Aprecio. Mas não sobre meus ombros, como diz a música aquela. Gosto do sol quando estou à sombra. Fico queimado com muita facilidade, tenho de confinar-me ao metro quadrado de sombra fornecido pelo guarda-sol. Só que, Copérnico já ensinou, o mundo gira sem descanso, e a sombra teima em se movimentar na areia da praia. Aí lá vou eu com a minha cadeira. Um metro para trás, mais um metro, e outro, e mais outro. Em uma hora, estou de costas para todo mundo. Irritante.
Alguém vai argumentar que deveria passar protetor. Pois passo. Fator 120, vitaminado. Fico todo melecado, e é melecado que entro no mar, e eis aí mais um problema. As pessoas falam que banho de mar faz bem para a saúde e acaba com o estresse e tudo mais. Certo. O banho de mar até é agradável, depois que passa o frio, mas, ao sair, sinto-me ainda mais grudento. Sobretudo porque venta e a areia cola ao corpo, e então lá estou eu untado de protetor 120 vitaminado, água salgada e areia, restrito a um metro quadrado de sombra semovente.
Levei anos para descobrir que isso me incomodava. Claro, há os belos corpos femininos malcobertos por roupas sumárias e há o futebolzinho com os amigos. Mas nem sempre há belos corpos femininos malcobertos por roupas sumárias à vista e nem sempre há futebolzinho. Logo, não compensa. Depois de tanto tempo, descobri que a vida de praiano não é para mim. Descobri que só aturava semanas e semanas infindáveis na praia porque os outros diziam que é maravilhoso e bibibi. Quantas coisas mais faço só porque as pessoas dizem que é bom? Quantas coisas deixo de fazer porque elas dizem que é ruim? Vou proceder uma reavaliação sobre mim mesmo. Tenho perdido tempo experimentando o gosto dos outros.
* Texto publicado na página 43 da ZH dominical
David Coimbra nasceu em Porto Alegre há 46 anos. Depois de trabalhar em mais de 10 redações do sul do Brasil, hoje é editor executivo de Esportes e colunista de Zero Hora, além de comentarista da TVCOM.
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