Toshio-san, ontem, na Praça Província de ShigaFoto: Adriana Franciosi |
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Quando ele atravessou o portão da área de desembarque rumo ao saguão do aeroporto Salgado Filho, Seu Toshio, de coração apertado, o reconheceu.
O menino de apenas seis anos que ele deixara no Japão agora era um homem de 40. O abraço de Toshio e Nobuo, o mais novo dos sete irmãos, juntou 34 anos de distância.
“Foi muito emocionante. Quando olhei pra ele eu pensei: será que estou aqui novamente? Ele parecia muito comigo”.
Nobuo fez do ano de 1964 um ano memorável, mas não só para o Seu Toshio. Irene, a filha que atualmente mora com o Seu Toshio, se diverte quando pensa na chegada do tio: “Ele trouxe um monte de presentes pra nós. Lembro que trouxe uns chicletes bem pequenininhos, nunca tínhamos visto aquilo!”
Seu Toshio feliz com a visita do irmão Nobuo. Com eles, Ives, de apenas 3 anos, na Vicente da Fontoura, na Capital
E o Ives, que na época tinha apenas 3 anos, repete a história que tantas vezes lhe contaram: “Eu e meu tio saímos para caminhar pela Vicente da Fontoura e eu não parava de falar! Queria mostrar as coisas para ele, mas até hoje não sei em que língua nós conversamos, pois eu não falava japonês...”.
Nobuo, que hoje tem 84 anos e vive no Japão, era agrônomo e estava viajando a trabalho. Seu destino era a Argentina e o Hawai. Felizmente, conseguiu fazer essa escala no Brasil para rever o irmão e sua família.
“Ele ficou apenas dois ou três dias. Passeamos por tudo, mostrei a cidade pra ele, mas o que ele gostou mesmo foi da Redenção!”
Nobuo se foi e a vida continuou. A Estofaria Toshio começava a ganhar clientela. Toshio teve como seus parceiros e ajudantes o sogro, dois cunhados e depois os filhos.
Muitos políticos e personalidades eram clientes do Seu Toshio. Entre as mais ilustres estava a Mafalda Verissimo, para quem Toshio reformou uma poltrona, estilo Berger, de Erico Veríssimo. Seria aquela da tradicional foto do escritor?
Além da notícia da morte de sua mãe, Teru, em 1967, Toshio enfrentou ainda a morte da mulher. Jessy, que tinha a saúde frágil, faleceu em 1978 vítima de pressão alta e de um derrame.
Toshio não quis se casar novamente. Com os filhos praticamente criados – o mais novo tinha 16 anos – dedicou-se ainda mais ao trabalho.
A Estofaria Toshio, por exemplo, existiu em quatro endereços diferentes, um de cada vez: primeiro na Travessa Comendador Batista, em seguida na Travessa do Carmo, ao lado da Epatur, depois na José do Patrocínio, e, por último, na Dona Eugênia, onde Toshio trabalhou até 2006 (com 94 anos). Hoje, um dos filhos assumiu a sua função.
Seu Toshio, na casa de Ives, escolhendo as fotos para esta reportagem Foto: Anik Suzuki
A concentração, o contato com a natureza e os exercícios físicos sempre estiveram presentes na sua vida.
Atualmente, ele acorda por volta das 6 horas, lê o jornal (com a ajuda de uma lupa), caminha quase todas as manhãs e, à tarde, desenha (nos próximos dias faremos um post só sobre os desenhos do S. Toshio!) ou dedica-se à leitura de livros.
“No momento estou lendo um livro sobre o Japão, mas não é bem o que eu esperava...” (isso que Seu Toshio está lendo o livro pela terceira vez, imagina se ele gostasse!).
Seu Toshio sempre foi e ainda é um homem forte e saudável. Sorte dos seis filhos, dos 11 netos e das duas bisnetas, pois ainda 'desfrutarão' dele por muitos e muitos anos...
Toshio entre os netos no dia do seu aniversário de 95 anos, em junho de 2007
Preciso de um final, então pergunto:
''Qual a sua melhor qualidade?''
Ele pensa, pensa, pensa e responde ''não sei''.
''Ah, Seu Toshio, mas certamente tem alguma!''
Ele ri.
''Que exemplo o senhor deixaria para seus netos?''
Ele se constrange, diz ''não sei''
''Mas se o senhor tivesse que dar a eles apenas um conselho, qual seria?''
Ives interrompe e diz: ''O pai nunca foi de falar, ele sempre foi de fazer.''
Humm, começo a achar que é humildade... Aí ele fala:
“EU SEI RECONHECER O QUE O OUTRO TEM DE BOM.''
Eu e seu Toshio, no início da tarde de ontem (24/04), numa praça em Porto Alegre. Foi uma das melhores reportagens que fiz nestes meus quase 10 anos de jornalismo.
Obrigada pela oportunidade Seu Toshio!
VIDA LONGA AO SEU TOSHIO!
As três gerações: Toshio, o filho Ives e o neto Ian Foto: Adriana Franciosi
Toshio com sua futura esposa em Porto AlegreFoto: Arquivo Pessoal |
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O que faltava para que sua vida fosse completa, Toshio ainda não sabia. Até que um certo dia conheceu um estudante de medicina, filho de um açougueiro de Porto Alegre, que estava veraneando em Canela. Conversa vai, conversa vem, o futuro médico convida Toshio para voltar à capital.
E o coração ficou dividido: na Serra Gaúcha Toshio tinha emprego, amigos, estudava português (que tanto queria), praticava esportes, freqüentava bailes. Porto Alegre representava o desconhecido. O que fazer?
Pensando em dar uma reviravolta à sua vida, Toshio, como se pode imaginar, aceitou o convite.
De volta à cidade grande, começa a trabalhar em uma fábrica de chapéus que ficava em frente ao açougue do pai do estudante. “Era a fábrica do senhor Contieri. Ali eu trabalhava abrigado, com mais conforto. Eu falava pouco o português, mas meu trabalho era atender as pessoas no escritório. Aí fui aprendendo também a fazer os chapéus”.
E foi produzindo chapéus que Toshio conheceu uma moça chamada Jessy, na época com cerca de 18 ou 20 anos, e descobriu o que tinha ido buscar em Porto Alegre: “Eu tinha que dar um jeito na minha vida, quando a vi, logo pensei em casar”.
E por algum tempo só pensou, pois a intenção de namorar a Jessy existia, mas a coragem não chegava. A sorte de Toshio é que o sentimento era recíproco e a própria moça deu o empurrãozinho que faltava, atraindo o jovem japonês para provar das ‘bergamota’ que ela tinha em casa. E entre um gomo e outro, o namoro finalmente deslanchou.
Toshio e Jessy com os dois filhos mais velhos, Ivan e Ione
Casaram-se em 1942. Num período de 18 anos, tiveram seis filhos: Ivan, Ione, Irio, Irene, Ícaro e Ives (que foi quem nos escreveu contando sobre o Seu Toshio).
Mas, voltando ao comecinho do casamento, foi nos primeiros anos da década de 40 que Toshio-san teve a idéia de trabalhar por conta própria. “Meus patrícios também chegavam aqui sem conhecimento e sem dinheiro e conseguiam viver indo para as lavanderias, lavando roupas. Então, me inspirei em outros japoneses”.
Foi assim que Toshio abriu sua própria lavanderia, na rua Independência, no centro de Porto Alegre. “Chamava-se Lavanderia Metrópole, lavava roupas e vendia revistas”.
Os primeiros anos do casamento foram também os últimos da Segunda Guerra Mundial, época difícil para os japoneses fora de seu país. Os filhos de Toshio-san lembram de a mãe, dona Jessy, contar que o casal viveu dias de medo e insegurança. Tanto que refugiaram-se na casa do sogro de Toshio, o estofador Acelyno Borges.
Felizmente a guerra acabou, a vida voltou ao normal, mas a lavanderia não durou muito tempo e Toshio resolveu aprender a profissão de Acelyno. Por alguns anos, dedicou-se à reforma de móveis ao lado do sogro. “Mas depois eu tive a minha própria loja, a Estofaria Toshio”.
Toshio e Jessy entre cinco dos seis filhos. Um deles estava batendo a foto
Com os resultados da estofaria, Toshio conseguiu firmar-se em Porto Alegre, manter a família, criar os filhos.
Sabia que não sairia mais desta cidade, embora não esquecesse suas raízes no Japão. “Uma vez uma senhora me disse: vou lhe mandar pro Japão! Mas eu não quis, achava que se fosse para o Japão poderia morrer lá e não voltar mais”.
O medo de Seu Toshio era fruto de experiência parecida. Um antigo chefe e amigo dos tempos de Canela foi visitar a Alemanha, sua Terra Natal, e faleceu.
E assim, 34 anos se passaram sem que Toshio reencontrasse seus pais ou seus irmãos. Até que veio a notícia de uma VISITA INESPERADA...
(Não perca amanhã o último capítulo da HISTÓRIA DE TOSHIO...)
Foto: Reprodução |
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Em 9 de outubro de 1930 chegava a São Paulo o navio La Plata Maru (foto), após 50 dias no mar. Entre os 450 imigrantes japoneses a bordo, estava o jovem Toshio Mizoguchi, de apenas 18 anos.
Toshio desembarcou sozinho no Porto de Santos, com pouquíssima bagagem e nenhum ‘português’, mas não se intimidou. Deixou para trás a família, os amigos e a Terra Natal sem saber que não voltaria a reencontrá-los. “Queria que minha vida fosse diferente no Brasil, queria que fosse mais solta, vim em busca de liberdade”.
Do porto foi levado direto para a Fazenda Aliança 3, próxima da Estação Lussanvira, no noroeste de São Paulo.
“Como eu não tinha dinheiro para comprar minha terra, ajudava os outros. Lá na Fazenda Aliança eu era ajudante de agricultor. Meu trabalho era fazer força. Trabalhávamos com café”.
Toshio (E), com um pastor que veio no mesmo navio, em um momento de descontração pelas ruas de São Paulo
Embora tenha sido bem acolhido, Toshio não estava feliz com o seu trabalho na Fazenda Aliança. Como convivia somente com outros imigrantes japoneses, achava que não conseguiria se integrar à cultura do país.
“Eu queria conhecer o Brasil e para isso precisava saber falar português, mas onde eu trabalhava só falavam em japonês. Então, eu queria sair de lá”.
E a vontade de deixar o local aumentou ainda mais quando enfrentou uma alergia na pele causada pela terra.
Assim, um ano depois de sua chegada, surge a oportunidade de ir para o Rio Grande do Sul e o recém-chegado Toshio decide arriscar.
Com nenhum dinheiro e muita esperança, lá se foi o Toshio. Pegou um trem até Santos, depois um navio da Lloyd do Brasil até Porto Alegre. Da viagem que fez até a capital gaúcha, lembra da calmaria e da beleza da Lagoa dos Patos.
Chegou à Capital em 1931 e foi trabalhar no Colégio Cruzeiro do Sul
O primeiro trabalho, em troca de comida e de um teto para se abrigar, foi no Colégio Cruzeiro do Sul, no bairro Teresópolis, onde na época havia uma chácara. “Lembro que trabalhava com a enxada. Queria muito aprender o português, era bom porque eu ficava perto das pessoas”.
Não demorou e surgiu uma nova oportunidade, agora para trabalhar em Canela, na Serra Gaúcha. Sem muito o que o segurasse em Porto Alegre, não teve dúvida, foi de novo.
Em Canela, onde ficou por alguns anos, trabalhou como descarregador de toras de madeira. “Fiquei forte. Trabalhava duro, na chuva, no frio, em qualquer situação. Mas gostava de lá, fiquei mais tempo do que eu planejava”.
Conta que em Canela fez amigos pra vida toda, especialmente entre os imigrantes alemães. “Tinha um descendente de alemão que falava inglês e português. Todos os dias ele me ensinava um pouco. Eu trabalhava durante o dia e à noite ia pra casa dele aprender”.
Além do aprendizado do Português, Toshio se esforçava também para aprender Alemão. Sua mãe, Teru, lhe enviou do Japão livros para que aprendesse o idioma predominante na Canela dos anos 30. Mas, quanto mais Toshio estudava, menos aprendia. “Lá não falavam o Alemão. Falavam um dialeto. Demorou até que eu percebesse”.
Toshio, terceiro da esquerda para a direita, entre colegas de ginástica em Canela (déc. de 30)
Para enfrentar a saudade, “que era muita”, Toshio escrevia cartas, principalmente para sua mãe. Era correspondido, recebia notícias, cartões e livros. E foi assim durante uns 30 anos, enquanto sua mãe era viva.
Quanto à solidão, disse que era pior quando faltava o dinheiro, provavelmente porque se afastava também do contato social.
Quando pergunto se conseguiu ter a ‘vida mais solta’ tão sonhada, Toshio, com olhar distante, vacila. “A educação que recebi não deixava eu me soltar, eu podia, mas eu próprio me prendia”.
De bom mesmo, aproveitava os bailes. “Às vezes, no meio da noite, precisava apagar o lampião para repor o querosene, aí todos tinham que bater palmas para manter as mãos ocupadas”, contou achando graça.
Se por um lado era tímido e contido (especialmente com as mulheres), por outro era aventureiro como poucos. Para se ter uma idéia, nos anos que ficou em Canela, mergulhou no poço da Cascata do Caracol porque disseram que era impossível; foi a pé de Canela a Nova Petrópolis porque ouviu dizer que a vista era bonita; e cruzou a nado a área que hoje abriga a Barragem do Salto para fazer exercício.
Era a liberdade que sonhara, mas ainda faltava aguma coisa...
(Continua amanhã...)
Toshio-san e o filho Ives Mizoguchi, que escreveu para o Planeta JapãoFoto: Anik Suzuki |
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Toshio-san veio até mim por um simples comentário deixado por seu filho em um post deste blog. Trocamos alguns e-mails que culminaram em uma entrevista, realizada no último dia 13, à tarde, um domingo chuvoso em Porto Alegre.
Prestes a completar 96 anos, Toshio Mizoguchi é um homem gentil, lúcido, curioso e de hábitos saudáveis. Apesar da catarata, é ávido leitor de jornais, atividade que exerce com a ajuda de uma lupa. Desenha com a firmeza e a força que já não tem para outros afazeres. E a dificuldade de audição, ele dribla com jeitinho e com o amor e a paciência dos que o cercam.
Seu Toshio tornou-se mais do que uma entrevista de trabalho para mim. Fui atrás de uma história típica de imigração e encontrei um homem que venceu o medo e a solidão em busca não de dinheiro ou de sobrevivência, mas de liberdade.
O QUE O TROUXE ATÉ AQUI
Em 1910, o Japão invadiu a Coréia e lá estabeleceu a política Nai Sun II Chi, que transformava ambos os países em uma única nação, com um único idioma. A língua coreana foi proibida e o seu uso foi banido, assim como a prática de artes marciais coreanas.
O Pastor Danichi Mizoguchi e sua esposa Teru, pais de Toshio. Fotos: Arquivo Pessoal
Neste tempo, um pastor japonês da Igreja Luterana (foto acima) foi enviado com sua mulher para a cidade de Busan (uma das sedes dos Jogos da Copa do Mundo de 2002), na época território japonês, hoje pertencente à Coréia do Sul.
Lá, no dia 25 de junho de 1912, nasceu o primogênito entre sete irmãos, o menino Toshio Mizoguchi, que cerca de 20 anos mais tarde viria a ser um dos primeiros japoneses a pisar em terras gaúchas.
Toshio, de kimono de bolinhas, entre os pais e cinco dos seis irmãos em uma praça no Japão
Bisneto de samurai e filho de pastor cristão, Toshio e os irmãos tiveram uma educação rígida e uma rotina que ele próprio classifica como “muito dura”. A atividade do pai exigia mudanças freqüentes de cidade e impunha uma situação financeira bastante limitada.
Toshio, terceiro da direita para a esquerda na fileira do meio, entre familiares. A mãe Teru é a segunda da direta para a esquerda, sentada
Lembrar dos tempos de criança 90 anos depois já não é um exercício tão fácil para Toshio-san, mas alguns períodos de sua infância ficaram marcados para sempre.
A ida para a escola, em Hokkaido (ilha mais ao norte do Japão, onde há gelo no mar e vulcões ativos e onde a temperatura no inverno já atingiu até 41 graus abaixo de zero), era uma verdadeira prova de resistência. E essa Toshio não esquece:
“Tinha muita neve, na altura das casas, a prefeitura abria um caminho de manhã cedo, um caminho de um metro de largura no meio da neve, para que as pessoas pudessem andar e assim eu podia chegar à escola. Mas era muito escuro e a gente tinha que lembrar do caminho”.
Toshio, terceiro da esquerda para a direita, entre tios e primos paternos
Outra lembrança do Japão da década de 10 era o gosto pelo futebol: “Fui campeão de futebol da região onde eu morava. Eu ficava até mais tarde na escola treinando, acabava com os meus sapatos”.
A escola onde o adolescente Toshio estudava ficava próximo de Tóquio e tinha vinculação com escolas da Inglaterra, por influência do seu diretor. Na época, era considerada a melhor do Japão. “Tínhamos orgulho de estudar lá. Tivemos até uma professora inglesa”.
Quando completou 18 anos, Toshio prestou vestibular (nossa, isso já existia na época!) e não passou. “Éramos sete irmãos, eu não podia trancar o caminho dos outros, tinha que achar o meu rumo ligeiro”.
Toshio, de terno, entre os pais e os irmãos, na última foto que tirou junto com a família antes de viajar para o Brasil, no ano de 1930
Como sua família era cristã, logo os Mizoguchi pensaram que a América seria um bom lugar, especialmente o Brasil, que além de estar com o processo imigratório incentivado (custeado pelo governo) sempre foi o maior país cristão do mundo.
Eles lembraram que nos Estados Unidos os imigrantes estavam ganhando muito dinheiro e conseguiam voltar para o Japão em melhores condições. Como, na visão dos japoneses, os Estados Unidos eram perto do Brasil, imaginaram que a situação seria a mesma... Mas não foi.
(Continua amanhã...)
As irmãs Suzuki, jornalistas e netas de japoneses, apresentam aqui o que há de mais bacana, inusitado e relevante na cultura japonesa. Com muita informação e interatividade, mostram como os costumes nipônicos vieram se entremeando aos brasileiros em cem anos de imigração.
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